Um dos últimos comerciais da Apple representa tudo o que eu odeio na Inteligência Artificial:
Warren, o protagonista da peça, causa espanto (possivelmente em seu chefe) pela qualidade do seu texto.
Isto é — pela qualidade do seu texto após usar a inteligência artificial.
Write smarter. Apple Intelligence.
Outras duas peças completam a campanha. Em uma, um funcionário precisa da inteligência artificial para resumir rapidamente um documento (e não passar vergonha numa reunião).
Catch up quick. Apple Intelligence.
Na última (graças a Deus), um empregado revoltado após alguém roubar seu pudim da geladeira usa a IA para mudar o tom de um e-mail escrito com ódio.
Change your tone. Apple Intelligence.
E eu não gosto desses 3 anúncios não apenas porque não acredito que esses sejam, de fato, as melhores formas de usar uma inteligência artificial.
Eu não gosto desses anúncios porque eles não parecem Apple.
O que Steve Jobs diria?
Em 1990, cinco anos após sair da Apple e quatro anos após fundar a Pixar, Steve Jobs foi entrevistado para o filme Memory & Imagination: New Pathways to the Library of Congress.
E, como não poderia deixar de ser, Jobs acabou falando sobre a sua visão sobre o futuro dos computadores e da era digital:
Eu acho que uma das coisas que realmente nos separa dos primatas superiores é que somos construtores de ferramentas. Li um estudo que mediu a eficiência de locomoção de várias espécies no planeta.
O condor usava a menor energia para se mover por um quilômetro. E os humanos apareceram com uma demonstração não muito impressionante, cerca de um terço do caminho para baixo na lista. Não foi uma demonstração muito orgulhosa para a coroa da criação. Então, isso não parecia tão bom.
Mas então, alguém da Scientific American teve a ideia de testar a eficiência de locomoção de um homem em uma bicicleta. E um homem em uma bicicleta, um humano em uma bicicleta, superou completamente o condor, ficando muito acima no topo dos gráficos.
E é isso que um computador significa para mim. O que um computador representa para mim é que ele é a ferramenta mais notável que já criamos, e é o equivalente a uma bicicleta para nossas mentes.
E aqui há um ponto importante: uma bicicleta é uma ferramenta, é algo que usamos para nos locomover com mais velocidade e com menos esforço.
Mas não é algo que se movimenta por nós.
Não posso pedir a minha bicicleta que vá à padaria e compre 4 pães. Também não posso pedir a ela que busque minha esposa no trabalho.
Para usar uma bicicleta, preciso continuar sendo humano. Preciso me equilibrar, escolher o caminho, olhar o trânsito, pedalar.
A bicicleta não substitui nada. Ela apenas deixa as coisas mais fáceis.
A campanha Think Different da Apple reforçava esta filosofia.
Celebrava os visionários, os rebeldes, os inovadores - aqueles que usavam as ferramentas à sua disposição para criar algo extraordinário e mudar o mundo.
A mensagem era clara: um computador — e, principalmente, um computador da Apple — existia para dar asas à criatividade humana, não para substituí-la.
Mas, com a Inteligência Artificial (ou Apple Intelligence, no trocadilho mais cretino da história), nada disso parece importar.
Talvez porque não saibamos mais o que é o tédio depois das redes sociais ou porque estejamos imersos em uma cultura de alta performance em que todo segundo precisa ser explorado no seu máximo potencial, tenhamos relegado o pensamento a uma perda de tempo.
Por que perder tempo desenvolvendo a paciência e escrevendo um e-mail amigável se uma IA pode fazer isso para você?
Por que se preparar para uma reunião se com um clique você tem o resumo daquele PDF?
Por que fazer um mínimo esforço para se comunicar como um adulto se uma IA pode esconder toda a sua incapacidade?
Estamos na época em que os computadores e a tecnologia não estão apenas amplificando nossas capacidades, mas efetivamente substituindo nossas deficiências.
Não que isso seja de todo mal:
Eu já trabalhei alguns anos atendendo público pelo WhatsApp e já recebi brieffings de campanhas de marketing que precisavam de um diploma em Egípcio Antigo para serem decifrados, então em muitos casos um texto reescrito pela IA é como um presente de Deus.
Mas deve ser essa a nossa aspiração? Será que é essa é a pergunta que a IA busca responder?
Nosso amigo Pedro Sette-Câmara comentou outro dia em suas Confissões no Instagram:
Se o seu laptop vai ser capaz de gravar uma reunião, transcrevê-la, e resumi-la; se ele vai ser capaz de revisar e resumir qualquer texto... quando VOCÊ vai realizar um trabalho intelectual?
As ideias surgem exatamente quando você faz o trabalho de formiguinha.
A ideia de que você vai ser um CEO da informação, recebendo inputs resumidos das suas Engenhocas, vai elevar a burrice do mundo a níveis que nem conseguimos imaginar.
Estamos caminhando para uma elitização sem precedentes.
De um lado, pessoas alfabetizadas, que sabem fazer contas, que cultivaram sua própria inteligência.
De outro lado, o povão chamando a Alexa para fazer o dever de casa.
Imagine a futura revolta contra concursos que exijam que você escreva à mão trinta linhas ali na hora, sem poder nem googlar nada.
Porque a maior diferença entre a inteligência humana e a artificial é tão simples que parece até óbvia demais para ser mencionada:
Se eu penso, medito, decido, fui eu, um ser humano, que pensei, meditei, decidi.
E eu sou mais importante para mim mesmo do que o meu MacBook.
Mas, afinal: existe alguma solução?
Eu não vou vestir o chapéu da hipocrisia e falar que acho tudo isso uma bobagem e que essas coisas, aqui em casa, não entram!
Essa imagem, aí em cima, foi feita usando inteligência artificial.
O prompt que eu usei no Midjourney foi escrito e aprimorado por uma inteligência artificial.
O trecho do Steve Jobs foi traduzido por uma inteligência artificial.
Mas este texto não foi escrito por uma inteligência artificial.
A ideia desse texto não nasceu de uma lista de 150 ideias de uma inteligência artificial.
Pelo menos isso eu posso dizer que é meu.
Um abraço,
André Catapan
P.S.: Na onda da vitória do Trump, li Morning After The Revolution, da jornalista americana e progressista Nellie Bowles. Ótima leitura para entender como as ideias tem consequências.
P.S.2: Comecei As Pequenas Virtudes, de Natalia Ginzburg.
P.S.3: Aquele jogo Hades é extremamente viciante. Não recomendo!!
Essa é a Apple hoje. Deal with it. 🤷🏻♂️